quarta-feira, 27 de julho de 2011

Caio Túlio Costa "Anarquismos e Anarquistas"

"Os anarquistas, se é que se pode encontrar algo de comum entre eles, têm em mira apenas o indivíduo, sem representantes, sem delegações, produtor, naturalmente em sociedade. Positivamente, eles preconizam uma nova sociedade e indicam alguns meios para isto. 
(...)
Existem vários anarquismos. A tentativa é detectá-los historicamente para compreendê-los um pouco antes que nos obriguem a esquecê-los. 
(...)
Os anarquistas sempre estiveram de acordo em relação ao fim último de seus propósitos, divergindo apenas quanto à tática mais convincente para consegui-lo. Os partidários de Tolstoi, próximos ao que se pode chamar de anarquismo cristão, não admitiam a violência em nenhuma circunstância. O inglês William Godwin esperava determinar mudanças mediante discussões. Proudhon e seus partidários propugnavam a mudança social através da proliferação das organizações cooperativas. Kropotkin aceitava a violência, mas a contragosto e somente porque a considerava inevitável na revolução e esta por sua vez inevitável na etapa do progresso humano. Bakunin em vários momentos teve dúvidas, mas combateu em barricadas e exaltou o caráter sanguinário da insurreição camponesa. Contrito, chegou a dizer que as revoluções cruéis são necessárias, única e exclusivamente por causa da estupidez humana;
(...)
Todos os anarquistas concordam que o homem possui, por natureza, todos os atributos necessários para viver em liberdade e concórdia social. Não acreditam que o homem seja bom por natureza, mas estão convencidos de que o seja por natureza social. 
(...)
O ódio visceral de todos os anarquistas é contra este leviatã da sociedade moderna, este organismo imenso e todo-poderoso, a síntese da autoridade e da centralização, a espada de Dâmocles que, pendida sobre a cabeça de cada cidadão, foi paulatinamente conquistando o poder político, econômico e social: o Estado. Todos o fulminam com invectivas e adjetivos. Consideram-no seu inimigo. Bakunin enlaça o conceito de Estado com o de Deus e os proclama principais adversários da liberdade humana. Proudhon não cansa de repetir que o governo do homem pelo homem é a servidão (...)"

COSTA, Caio Túlio. O que é o Anarquismo. ed. Brasiliense. pp. 11-17.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Augusto dos Anjos "Soneto" (Podre Pai)

 
"A meu Pai doente
 
1
Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas...
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!
Que coisa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!
Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!
- Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus, 
Deus não havia de magoar-te assim!
A meu Pai morto
2
Madrugada de Treze de Janeiro.
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
E disse à minha mãe que me dizia:
Acorda-o! deixa-o, Mãe, dormir primeiro!
E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...
 
Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!

3
Podre meu Pai! A morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Micro-organismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!...

Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...

Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!..."

ANJOS, dos Augusto. Soneto. ed. L&PM. pp. 76-78.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Ned Ludd e a Crítica do Ativismo

"O papel de ativista é um papel que adotamos como aquele do policial, pai ou padre - uma estranha forma psicológica que usamos para definir a nós mesmos em relação aos outros. O ativista é um especialista ou um expert em transformação social - apesar de sabermos que quanto mais forte nos apegamos e somos fiéis a este papel e à noção do que somos, mais estaremos impedindo a transformação que desejamos. Uma verdadeira revolução envolverá uma quebra de todos os papéis e funções preconcebidos e a destruição de todo especialismo - a recuperação de nossas vidas.
(...)
A atividade supostamente revolucionária do ativista é uma rotina cega e estéril - uma constante repetição de poucas ações sem potencial para a mudança. Ativistas provavelmente resistiriam à mudança caso ela viesse, uma vez que ela destruiria as fáceis certezas de seu papel e o agradável pequeno nicho que eles cavaram para si mesmos. Da mesma forma que chefes de sindicatos, ativistas são eternos representantes e mediadores. Da mesma forma que líderes sindicais seriam contra o sucesso de seus trabalhadores na sua luta, porque isto provavelmente acabaria com seu emprego, o papel do ativista também é ameaçado pela mudança.
(...)
A chave para entender o papel do militante e do ativista é o sacrifício próprio - o sacrifício de si mesmo para a causa, que é vista como algo separado de si próprio. Isto, é claro, não tem nada a ver com a verdadeira atividade revolucionária que é encontrar a si próprio. O martírio revolucionário caminha junto com a identificação de alguma causa separada de sua própria vida - uma ação contra o capitalismo que identifica o capitalismo como lá fora na City é fundamentalmente um engano. O poder real do capital está aqui mesmo na nossa vida cotidiana - nós recriamos o seu poder todos os dias, porque o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas (e também entre classes) mediada por coisas."
LUDD, Ned. Baderna - Urgência das Ruas. ed. Conrad, pp. 34-37.