"Tratar de Tiradentes, apesar das dificuldades e riscos, é sempre interessante. Foi o herói mais votado na pequena pesquisa feita entre estudantes, e quase certamente o seria num plebiscito nacional. Nele, a história que as pessoas chamam real ou verdadeira confunde-se com a tradição que alimenta o imaginário popular. Confunde-se e vai confundir-se sempre, porque inscrita em um espaço impenetrável para a ciência, pois enquanto a universidade rejeita (para justificar sua própria existência) uma história que, à falta de evidências, dá livre curso à imaginação e à fantasia, a 'massa' - cuja conquista pelos intelectuais, após Foucault, tornou-se questão complicada - ignora soberba as opiniões e sentenças que a academia continua emitindo.
Tira-dentes, herói nacional: um homem que só deu certo depois de morto. Aí talvez a razão maior da identidade, num lugar onde a vida reserva poucas esperanças de sucesso. Além do exemplo e do conselho que se espera do herói, uma grande vingança...
Do rosto de Tiradentes pouco se sabe. Sumiu com a cabeça, que a mando das autoridades foi separada do corpo; perdeu-se quando os olhos que o viram vivo também deixaram de ver. Por isso, cada um tratou de criar seu próprio Tiradentes, havendo quem o veja como imponente oficial e quem o apresente assemelhado a Jesus Cristo. Há ainda quem pesquise para recuperar suas feições verdadeiras: Elifas Andreato, na capa de um disco, apresenta uma espécie de retrato-falado, onde o herói aparece meio vesgo, de olhos empapuçados, nariz achatado, barbas e cabelos longos, além de um ar de boêmio fanfarrão, muito de acordo com as descrições que se tem dele, por sinal.
Talvez haja vantagem nisso, mas o mito começa a se dissolver quando desvendado: o habitat do herói é a imaginação, e cada um deve vê-lo (senti-lo) com seus próprios olhos. Não há retrato de Tiradentes, a não ser o que as palavras desenham, e as palavras dizem principalmente: 'por aqui passava um homem...' "
MICELI, Paulo. O Mito do Herói Nacional. São Paulo: ed. Contexto, p.41.