sábado, 27 de agosto de 2011

Castro Alves "Espumas Flutuantes"


“Era um sonho dantesco!... o tombadilho,
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros...estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra, irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos...o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra.
E após fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!...

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual num sonho dantesco as sombras
[voam...!
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...”
ALVES, Castro. O Navio Negreiro, parte IV Espumas Flutuantes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d.. p. 184-5.

domingo, 14 de agosto de 2011

Frei Boff "Alento àqueles que se acham desolados com a Igreja"

"Atualmente, há muita desolação com referência à Igreja Católica institucional. Verifica-se dupla emigração: uma exterior, pessoas que abandonam concretamente a Igreja, e outra interior, as que permanecem nela, mas não a sentem mais como um lar espiritual. Continuam a crer, apesar da Igreja.

Não é para menos. O atual papa tomou iniciativas radicais que dividiram o corpo eclesial. Assumiu rota de confronto com dois importantes episcopados, o alemão e francês, ao introduzir a missa em latim. Elaborou uma esdrúxula reconciliação com a Igreja cismática dos seguidores de Lefebvre; esvaziou as principais intuições renovadoras do Concílio Vaticano II, especialmente o ecumenismo, negando, ofensivamente, o título de "Igreja" às demais igrejas que não sejam a Católica e a Ortodoxa. Ainda como cardeal, mostrou-se gravemente leniente com os pedófilos; sua relação com a Aids beira os limites da desumanidade.

A atual Igreja Católica mergulhou num inverno rigoroso. A base social de apoio ao modelo velhista do atual papa é constituída por grupos conservadores, mais interessados nas performances mediáticas, na lógica do mercado, do que em propor mensagem adequada aos graves problemas atuais. Oferecem um "cristianismo-prozac", apto para anestesiar consciências angustiadas, mas alienado face à humanidade sofredora.

Urge animar esses cristãos em vias de migração quanto ao que é essencial ao cristianismo. Seguramente, não é a Igreja que foi objeto da pregação de Jesus. Ele anunciou um sonho, o Reino de Deus, em contraposição ao Reino de César - Reino de Deus que representa uma revolução absoluta das relações desde as individuais até as divinas e cósmicas.

O cristianismo compareceu primeiramente na história como movimento e caminho de Cristo. Ele é anterior à sua sedimentação nos quatro evangelhos e nas doutrinas. O caráter de caminho espiritual é um tipo de cristianismo que possui seu próprio curso. Geralmente vive à margem e, às vezes, em distância crítica da instituição oficial. Mas nasce e se alimenta do permanente fascínio pela figura e mensagem libertária e espiritual de Jesus de Nazaré. Inicialmente tido como "heresia dos Nazarenos" (At 24,5) ou simplesmente "heresia" (At 28,22) no sentido de "grupelho", o cristianismo foi lentamente ganhando autonomia até seus seguidores, nos Atos dos Apóstolos (11,36), serem chamados de "cristãos."

O movimento de Jesus certamente é a força mais vigorosa do cristianismo, mais que as igrejas, por não estar enquadrado nas instituições ou aprisionado em doutrinas e dogmas. É composto por todo tipo de gente, das mais variadas culturas e tradições, até por agnósticos e ateus que se deixam tocar pela figura corajosa de Jesus e o sonho que anunciou, um reino de amor e de liberdade, por sua ética de amor incondicional, especialmente aos pobres e oprimidos, e pela forma como assumiu o drama humano, no meio de humilhações, torturas e da execução na cruz.

Esse cristianismo como caminho espiritual é o que realmente conta. A instituição da Igreja sempre vive em tensão com o caminho espiritual. Ótimo quando caminham juntos, mas é raro. O decisivo é, no entanto, o caminho espiritual. Esse tem a força de alimentar uma visão espiritual da vida e de animar o sentido da caminhada humana.

O importante é que o cristianismo mantenha seu caráter de caminho espiritual. É ele que pode sustentar tantos cristãos e cristãs face à mediocridade e à irrelevância em que caiu a Igreja atual."
BOFF, Leonardo.  Alento àqueles que se acham desolados com a Igreja. In: Jornal O Tempo, 12 agosto 2011.