sexta-feira, 23 de abril de 2010

O "Herói" Tiradentes por Paulo Miceli

"Tratar de Tiradentes, apesar das dificuldades e riscos, é sempre interessante. Foi o herói mais votado na pequena pesquisa feita entre estudantes, e quase certamente o seria num plebiscito nacional. Nele, a história que as pessoas chamam real ou verdadeira confunde-se com a tradição que alimenta o imaginário popular. Confunde-se e vai confundir-se sempre, porque inscrita em um espaço impenetrável para a ciência, pois enquanto a universidade rejeita (para justificar sua própria existência) uma história que, à falta de evidências, dá livre curso à imaginação e à fantasia, a 'massa' - cuja conquista pelos intelectuais, após Foucault, tornou-se questão complicada - ignora soberba as opiniões e sentenças que a academia continua emitindo.
Tira-dentes, herói nacional: um homem que só deu certo depois de morto. Aí talvez a razão maior da identidade, num lugar onde a vida reserva poucas esperanças de sucesso. Além do exemplo e do conselho que se espera do herói, uma grande vingança...
Do rosto de Tiradentes pouco se sabe. Sumiu com a cabeça, que a mando das autoridades foi separada do corpo; perdeu-se quando os olhos que o viram vivo também deixaram de ver. Por isso, cada um tratou de criar seu próprio Tiradentes, havendo quem o veja como imponente oficial e quem o apresente assemelhado a Jesus Cristo. Há ainda quem pesquise para recuperar suas feições verdadeiras: Elifas Andreato, na capa de um disco, apresenta uma espécie de retrato-falado, onde o herói aparece meio vesgo, de olhos empapuçados, nariz achatado, barbas e cabelos longos, além de um ar de boêmio fanfarrão, muito de acordo com as descrições que se tem dele, por sinal.
Talvez haja vantagem nisso, mas o mito começa a se dissolver quando desvendado: o habitat do herói é a imaginação, e cada um deve vê-lo (senti-lo) com seus próprios olhos. Não há retrato de Tiradentes, a não ser o que as palavras desenham, e as palavras dizem principalmente: 'por aqui passava um homem...' "

MICELI, Paulo. O Mito do Herói Nacional. São Paulo: ed. Contexto, p.41.


 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Georges Duby e a Peste Negra


"O mal propagava-se melhor nos amontoados de pardieiros insalubres. Um mal cego. Estava-se acostumado a vê-lo ceifar as crianças, os pobres. Eis que ele atacava antes os adultos jovens, em pleno vigor, e, o que era francamente escandaloso: atacava também os ricos. Os contemporâneos pensam que um terço da população européia desapareceu com o flagelo. O julgamento parece concordar com o que se pode verificar no conjunto. O tributo pago pelas grandes cidades foi certamente mais pesado (...) a doença havia-se instalado, voltando a se manifestar periodicamente, a cada dez, vinte anos, e com igual fúria. Que fazer? Havia grandes médicos na corte do papa de Avignon, e em Paris, junto ao rei da França; ansiosos, eles se interrogavam. Em vão. De onde vinha o mal? Do pecado? A culpa é dos judeus, eles envenenaram os poços; tudo é pretexto para massacrá-los. É a cólera de Deus: as pessoas flagelam-se para aplacá-la. As cidades encolhem-se no cinturão de suas muralhas, trancafiam-se. Matavam-se os que queriam, à noite, insinuar-se dentro dela; ou então, ao contrário, fugia-se em bandos errantes, enlouquecidos. Em todo caso, o sobressalto, a brusca interrupção, a grande fratura."

DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: ed. Martins Fontes, 1988, pp. 112-3.


quarta-feira, 7 de abril de 2010

Gombrich e as fascinantes Pirâmides

"Falam-nos de uma terra que estava tão perfeitamente organizada que foi capaz de empilhar esses gigantescos morros tumulares durante a vida de um único monarca, e falam-nos de reis que eram tão ricos e poderosos que puderam forçar milhares e milhares de trabalhadores ou escravos a labutar para eles, ano após ano, a cortar pedras nos canteiros, a arrastá-las ao local da construção e a deslocá-las com recursos sumamente primitivos até o túmulo ficar pronto para receber o faraó."
GOMBRICH, Ernst. Arte para a Eternidade. In: A História da Arte. ed. LTC. p. 55.
 
 

domingo, 4 de abril de 2010

Baudrillard e a Virtualidade

"O cadáver do Real - se existe algum - não foi descoberto, e não será encontrado em parte alguma. E isto porque o Real não está apenas morto (como Deus está); ele pura e simplesmente desapareceu. Em nosso próprio mundo virtual, a questão do real, do referente, do sujeito e seu objeto, não pode mais ser apresentada."

"...a espécie humana poderia estar se empenhando numa espécie de escrita automática do mundo, dedicando-se a uma realidade virtual automatizada e operacionalizada, onde os seres humanos enquanto tais não têm mais motivos para existir."
"A subjetividade humana torna-se um conjunto de funções inúteis (...) todas as funções tradicionais - a crítica, a política, a sexual, as funções sociais - tornam-se inúteis num mundo virtual."

BAUDRILLARD, Jean. A Ilusão Vital. ed. Civilização Brasileira, 2001.