terça-feira, 22 de junho de 2010

Hume e a religião natural

"Lançai um olhar em redor do mundo; contemplai o todo e cada uma das suas partes; vereis que não é senão uma grande máquina, subdividida num infinito número de máquinas menores, que por sua vez admitem subdivisões num grau que vai para além do que os sentidos e as faculdades humanas podem captar e explicar.
Todas essas máquinas e até as suas partes menores se ajustam entre si com uma precisão que arrebata a admiração de todos quantos as contemplarem. A singular adaptação dos meios aos fins na natureza inteira assemelha-se exatamente, ainda que em muito excede, aos produtos do engenho humano, aos desígnios do homem, de seus pensamentos, sua sabedoria e sua inteligência.
Se, portanto, os efeitos se assemelham entre si, estamos obrigados a inferir...que também as causas são semelhantes, e que o Autor da Natureza se parece em algo com a mente humana, ainda que as suas faculdades sejam muito mais consideráveis, em proporção com a grandeza da obra que executou"

HUME, David. Diálogos sobre a religião natural.

O Deísmo segundo Voltaire

"O deísta é um homem firmemente persuadido da existência de um Ser supremo tão bom como poderoso, que formou todos os seres extensos, vegetantes, sensíveis e reflexivos...
Reunido neste princípio com o resto do universo, não abraça nenhuma das seitas, que todas elas se contradizem. A sua religião é a mais antiga e a mais extensa; pois a simples adoração de um Deus precedeu todos os sistemas do mundo... Crê que a religião não consiste nem nas opiniões de uma metafísica ininteligível, nem em vãos aparatos ou solenidades...
O maometano grita-lhe: tem cuidado, se não fazes a peregrinação a Meca!
Desgraçado de ti, diz-lhe um franciscano, se não fazes uma viagem a Nossa Senhora do Loreto!
Ele ri-se de Loreto e de Meca; mas socorre o indigente e defende o oprimido."

VOLTAIRE. François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Engels e as Primeiras Formações Familiares

"...o círculo da união conjugal comum, que era muito amplo em sua origem, estreita-se pouco a pouco até que, finalmente, compreende apenas o casal isolado que hoje predomina. (...)
E, de fato, que encontramos como forma mais antiga e primitiva da família, cuja existência possamos comprovar irrefutavelmente pela história e que ainda hoje podemos estudar em certos lugares? É o casamento grupal, forma em que grupos inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres se possuem mutuamente, deixando bem pouca margem para ciúmes.
(...) primeira etapa da família (...) só os ascendentes e os descendentes, os pais e os filhos, estão reciprocamente excluídos dos direitos e deveres do casamento (...) nesse estágio, o vínculo de irmão e irmã pressupõe por si a relação sexual entre ambos. (...)
Se o primeiro progresso na organização da família consistiu em excluir os pais e os filhos das relações sexuais entre si, o segundo foi a exclusão dos irmãos. (...)
Em todas as formas de família por grupos, não se pode saber com certeza quem é o pai de uma criança, mas sabe-se quem é a mãe (...) a descendência por linha materna é a única decisiva, sendo a única certa. Uma vez proibidas as relações sexuais entre todos os irmãos e irmãs, inclusive os colaterais mais distantes por linha materna, o grupo de que falamos se transforma numa gens, isto é, constitui-se como que um círculo fechado de parentes consanguíneos por linha feminina que não se podem casar entre si. (...)
À medida que, porém, desenvolvia-se a gens e se tornavam mais numerosas as classes de irmãos e irmãs, entre os quais agora era impossível o casamento, a união conjugal por pares, baseada num certo costume, começou a se consolidar (...) Com o crescente emaranhado das proibições de casamento, os casamentos por grupos se tornaram cada vez mais impossíveis e acabaram sendo substituídos pela família pré-monogâmica. Nesse estágio, um homem vive com uma mulher, mas de forma tal que a poligamia e a infidelidade ocasional permanecem um direito dos homens, embora a poligamia seja raramente observada, também por causas econômicas, ao passo que, na maioria dos casos, exige-se das mulheres a mais rigorosa fidelidade enquanto durar a vida em comum, sendo o adultério destas castigado de maneira cruel."


ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. trad. Ciro Mioranza. ed. Escala, p. 42-57.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O "Herói" Tiradentes por Paulo Miceli

"Tratar de Tiradentes, apesar das dificuldades e riscos, é sempre interessante. Foi o herói mais votado na pequena pesquisa feita entre estudantes, e quase certamente o seria num plebiscito nacional. Nele, a história que as pessoas chamam real ou verdadeira confunde-se com a tradição que alimenta o imaginário popular. Confunde-se e vai confundir-se sempre, porque inscrita em um espaço impenetrável para a ciência, pois enquanto a universidade rejeita (para justificar sua própria existência) uma história que, à falta de evidências, dá livre curso à imaginação e à fantasia, a 'massa' - cuja conquista pelos intelectuais, após Foucault, tornou-se questão complicada - ignora soberba as opiniões e sentenças que a academia continua emitindo.
Tira-dentes, herói nacional: um homem que só deu certo depois de morto. Aí talvez a razão maior da identidade, num lugar onde a vida reserva poucas esperanças de sucesso. Além do exemplo e do conselho que se espera do herói, uma grande vingança...
Do rosto de Tiradentes pouco se sabe. Sumiu com a cabeça, que a mando das autoridades foi separada do corpo; perdeu-se quando os olhos que o viram vivo também deixaram de ver. Por isso, cada um tratou de criar seu próprio Tiradentes, havendo quem o veja como imponente oficial e quem o apresente assemelhado a Jesus Cristo. Há ainda quem pesquise para recuperar suas feições verdadeiras: Elifas Andreato, na capa de um disco, apresenta uma espécie de retrato-falado, onde o herói aparece meio vesgo, de olhos empapuçados, nariz achatado, barbas e cabelos longos, além de um ar de boêmio fanfarrão, muito de acordo com as descrições que se tem dele, por sinal.
Talvez haja vantagem nisso, mas o mito começa a se dissolver quando desvendado: o habitat do herói é a imaginação, e cada um deve vê-lo (senti-lo) com seus próprios olhos. Não há retrato de Tiradentes, a não ser o que as palavras desenham, e as palavras dizem principalmente: 'por aqui passava um homem...' "

MICELI, Paulo. O Mito do Herói Nacional. São Paulo: ed. Contexto, p.41.


 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Georges Duby e a Peste Negra


"O mal propagava-se melhor nos amontoados de pardieiros insalubres. Um mal cego. Estava-se acostumado a vê-lo ceifar as crianças, os pobres. Eis que ele atacava antes os adultos jovens, em pleno vigor, e, o que era francamente escandaloso: atacava também os ricos. Os contemporâneos pensam que um terço da população européia desapareceu com o flagelo. O julgamento parece concordar com o que se pode verificar no conjunto. O tributo pago pelas grandes cidades foi certamente mais pesado (...) a doença havia-se instalado, voltando a se manifestar periodicamente, a cada dez, vinte anos, e com igual fúria. Que fazer? Havia grandes médicos na corte do papa de Avignon, e em Paris, junto ao rei da França; ansiosos, eles se interrogavam. Em vão. De onde vinha o mal? Do pecado? A culpa é dos judeus, eles envenenaram os poços; tudo é pretexto para massacrá-los. É a cólera de Deus: as pessoas flagelam-se para aplacá-la. As cidades encolhem-se no cinturão de suas muralhas, trancafiam-se. Matavam-se os que queriam, à noite, insinuar-se dentro dela; ou então, ao contrário, fugia-se em bandos errantes, enlouquecidos. Em todo caso, o sobressalto, a brusca interrupção, a grande fratura."

DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: ed. Martins Fontes, 1988, pp. 112-3.


quarta-feira, 7 de abril de 2010

Gombrich e as fascinantes Pirâmides

"Falam-nos de uma terra que estava tão perfeitamente organizada que foi capaz de empilhar esses gigantescos morros tumulares durante a vida de um único monarca, e falam-nos de reis que eram tão ricos e poderosos que puderam forçar milhares e milhares de trabalhadores ou escravos a labutar para eles, ano após ano, a cortar pedras nos canteiros, a arrastá-las ao local da construção e a deslocá-las com recursos sumamente primitivos até o túmulo ficar pronto para receber o faraó."
GOMBRICH, Ernst. Arte para a Eternidade. In: A História da Arte. ed. LTC. p. 55.
 
 

domingo, 4 de abril de 2010

Baudrillard e a Virtualidade

"O cadáver do Real - se existe algum - não foi descoberto, e não será encontrado em parte alguma. E isto porque o Real não está apenas morto (como Deus está); ele pura e simplesmente desapareceu. Em nosso próprio mundo virtual, a questão do real, do referente, do sujeito e seu objeto, não pode mais ser apresentada."

"...a espécie humana poderia estar se empenhando numa espécie de escrita automática do mundo, dedicando-se a uma realidade virtual automatizada e operacionalizada, onde os seres humanos enquanto tais não têm mais motivos para existir."
"A subjetividade humana torna-se um conjunto de funções inúteis (...) todas as funções tradicionais - a crítica, a política, a sexual, as funções sociais - tornam-se inúteis num mundo virtual."

BAUDRILLARD, Jean. A Ilusão Vital. ed. Civilização Brasileira, 2001.