quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

As morenas gostosas de Gilberto Freyre

"O longo contato com os sarracenos deixava idealizada entre os portugueses a figura da moura-encantada, tipo delicioso de mulher morena e de olhos pretos, envolta em misticismo sexual - sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas das fontes mal-assombradas - que os colonizadores vieram encontrar parecido, quase igual, entre as índias nuas e de cabelos soltos do Brasil. Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardo pintado de vermelho, e, tanto quanto as nereidas mouriscas, eram doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente nudez e por um pente para pentear o cabelo. Além do que, eram gordas como mouras. Apenas menos ariscas: por qualquer bugiganga ou caco de espelho estavam se entregando, de pernas abertas, aos caraíbas gulosos de mulher. [...]
Pode-se, entretando, afirmar que a mulher morena tem sido a preferida dos portugueses para o amor, pelo menos para o amor físico. A moda de mulher loura, limitada aliás às classes altas, terá  sido antes a repercussão de influências exteriores do que a expressão de genuíno gosto nacional. Com relação ao Brasil, que o diga o ditado: 'Branca para casar, mulata para foder, negra para trabalhar'[...]

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia  patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1990, p.9-10 

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Anarquismo em Kropotkin

"Os anarquistas são os únicos a defender por inteiro o princípio da liberdade. Todos os outros gabam-se de tornar a humanidade feliz mudando ou suavizando a forma do açoite. (...)
Sem açoite, sem  coerção, de um  modo ou de outro, sem o açoite do salário ou da fome, sem aquele do juiz ou do policial, sem aquele da punição sob uma forma ou outra, eles não  podem conceber a sociedade. Só nós ousamos afirmar que punição, polícia, juiz, salário e fome nunca foram, e jamais serão, um elemento de progresso(...)
O anarquista (...) deve fazer sobressair a parte  grande, filosófica, do princípio da anarquia. Deve aplicá-la a ciência, pois, por isso, ele ajudará a remodelar as ideias: ele combaterá as mentiras da história, da economia social, da filosofia, e  ajudará aqueles que já o  fazem, amiúde incoscientemente, por amor à verdade científica, a impor a marca  anarquista ao pensamento do  século.
Deve apoiar a luta e a agitação de  todos os dias contra  opressores e preconceitos, manter o espírito de revolta em toda a parte onde o homem sente-se oprimido e possui a coragem de revoltar-se."
KROPOTKIN, Piotr Alekseievich. O Princípio Anarquista e Outros Ensaios. São Paulo, ed. Hedra.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Hobsbawm e a Bandeira da Revolução

"A Revolução Francesa dominou a história, a própria linguagem e o simbolismo da política ocidental desde sua irrupção até o período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial (...) Assim, por quase um século e meio, a bandeira tricolor francesa forneceu abertamente o modelo para as bandeiras da maioria dos Estados recém-independentes ou unificados no mundo: a Alemanha escolheu o preto, o branco e o vermelho; a Itália, verde, branco e vermelho (...) Mesmo na América, as bandeiras que mostram a influência tricolor superam o número das que mostram influência do Norte."
HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.

domingo, 21 de novembro de 2010

Marx e Engels "Sociedade Desigual e Revolução Comunista"

A história de toda a sociedade existente até hoje tem sido a história das lutas de classes.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, o opressor e o oprimido permaneceram em constante oposição um ao outro, levada a efeito numa guerra ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou, cada vez, ou pela reconstituição revolucionária de toda a sociedade ou pela destruição das classes em conflito.
Desde as épocas mais remotas da história, encontramos, em  praticamente toda parte, uma complexa divisão de sociedade em classes diferentes,  uma gradação múltipla das condições sociais (...)
A sociedade moderna burguesa, surgida das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Apenas estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das velhas.
No entanto, a nossa época, a época da burguesia,  possui  uma  característica: simplificou os antagonismos de classes. A sociedade global divide-se cada vez mais em dois campos hostis, em duas grandes classes que se defrontam - a burguesia e o proletariado (...)
Horrorizai-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas, em nossa sociedade, a propriedade privada já foi abolida para nove décimos da população; se ela existe para alguns poucos é precisamente porque não existe para esses nove décimos. Acusai-nos, portanto, de procurar destruir uma forma de propriedade cuja condição de existência é a abolição de qualquer propriedade para a imensa maioria da sociedade.
Em suma, acusai-nos de abolir a vossa propriedade. Pois bem, é exatamente isso o que temos em mente (...)
Que as classes dominantes tremam diante de revolução comunista! Os proletários nada têm a perder senão seus grilhões. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 93-124.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

José Barbosa Júnior e o Preconceito/idiota sobre os nordestinos

As eleições de 2010 trouxeram à tona, entre muitas outras coisas, o que há de pior no Brasil em relação aos preconceitos. Sejam eles religiosos, partidários, regionais, foram lançados à luz de maneira violenta, sádica e contraditória.

Já escrevi sobre os preconceitos religiosos em outros textos e a cada dia me envergonho mais do povo que se diz evangélico (do qual faço parte) e dos pilantras profissionais de púlpito, como Silas Malafaia, Renê Terra Nova e outros, que se venderam de forma absurda aos seus candidatos. A luta pelo poder ainda é a maior no meio do baixo-evangelicismo brasileiro.
Mas o que me motivou a escrever este texto foi a celeuma causada na internet, que extrapolou a rede mundial de computadores, pelas declarações da paulista, estudante de Direito, Mayara Petruso, alavancada por uma declaração no twitter: “Nordestino não é gente. Faça um favor a SP, mate um nordestino afogado!”.
Infelizmente, Mayara não foi a única. Vários outros “brasileiros” também passaram a agredir os nordestinos, revoltados com o resultado final das eleições, que elegeu a primeira mulher presidentE ou presidentA (sim, fui corrigido por muitos e convencido pelos “amigos” Houaiss e Aurélio) do nosso país.
E fiquei a pensar nas verdades ditas por estes jovens, tão emocionados em suas declarações contra os nordestinos. Eles têm razão! 

Os nordestinos devem ficar quietos! Cale a boca, povo do Nordeste!
Que coisas boas vocês têm pra oferecer ao resto do país?
Ou vocês pensam que são os bons só porque deram à literatura brasileira nomes como o do alagoano Graciliano Ramos, dos paraibanos José Lins do Rego e Ariano Suassuna, dos pernambucanos João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira, ou então dos cearenses José de Alencar e a maravilhosa Rachel de Queiroz?
Só porque o Maranhão nos deu Gonçalves Dias, Aluisio Azevedo, Arthur Azevedo, Ferreira Gullar, José Louzeiro e Josué Montello, e o Ceará nos presenteou com José de Alencar e Patativa do Assaré e a Bahia em seus encantos nos deu como herança Jorge Amado, vocês pensam que podem tudo?
Isso sem falar no humor brasileiro, de quem sugamos de vocês os talentos do genial Chico Anysio, do eterno trapalhão Renato Aragão, de Tom Cavalcante e até mesmo do palhaço Tiririca, que foi eleito o deputado federal mais votado pelos… pasmem… PAULISTAS!!!

E já que está na moda o cinema brasileiro, ainda poderia falar de atores como os cearenses José Wilker, Luiza Tomé, Milton Moraes e Emiliano Queiróz, o inesquecível Dirceu Borboleta, ou ainda do paraibano José Dumont ou de Marco Nanini, pernambucano.

Ah! E ainda os baianos Lázaro Ramos e Wagner Moura, que será eternizado pelo “carioca” Capitão Nascimento, de Tropa de Elite, 1 e 2.

Música? Não, vocês nordestinos não poderiam ter coisa boa a nos oferecer, povo analfabeto e sem cultura…
Ou pensam que teremos que aceitar vocês por causa da aterradora simplicidade e majestade de Luiz Gonzaga, o rei do baião? Ou das lindas canções de Nando Cordel e dos seus conterrâneos pernambucanos Alceu Valença, Dominguinhos, Geraldo Azevedo e Lenine? Isso sem falar nos paraibanos Zé e Elba Ramalho e do cearense Fagner…
E Não poderia deixar de lembrar também da genial família Caymmi e suas melofias doces e baianas a embalar dias e noites repletas de poesia…
Ah! Nordestinos…
Além de tudo isso, vocês ainda resistiram à escravatura. E foi daí que nasceu o mais famoso quilombo, símbolo da resistência dos negros à força opressora do branco que sabe o que é melhor para o nosso país. Por que vocês foram nos dar Zumbi dos Palmares? Só para marcar mais um ponto na sofrida e linda história do seu povo?
Um conselho, pobres nordestinos. Vocês deveriam aprender conosco, povo civilizado do sul e sudeste do Brasil. Nós, sim, temos coisas boas a lhes ensinar.
Por que não aprendem conosco os batidões do funk carioca? Deveriam aprender e ver as suas meninas dançarem até o chão, sendo carinhosamente chamadas de “cachorras”. Além disso, deveriam aprender também muito da poesia estética e musical de Tati Quebra-Barraco, Latino e Kelly Key. Sim, porque melhor que a asa branca bater asas e voar, é ter festa no apê e rolar bundalelê!
Por que não aprendem do pagode gostoso de Netinho de Paula? E ainda poderiam levar suas meninas para “um dia de princesa” (se não apanharem no caminho)! Ou então o rock melódico e poético de Supla! Vocês adorariam!!!
Mas se não quiserem, podemos pedir ao pessoal aqui do lado, do Mato Grosso do Sul, que lhes exporte o sertanejo universitário… coisa da melhor qualidade!

Ah! E sem falar numa coisa que vocês tem que aprender conosco, povo civilizado, branco e intelectualizado: explorar bem o trabalho infantil! Vocês não sabem, mas na verdade não está em jogo se é ou não trabalho infantil (isso pouco vale pra justiça), o que importa mesmo é o QUANTO esse trabalho infantil vai render. Ou vocês não perceberam ainda que suas crianças não podem trabalhar nas plantações, nas roças, etc. porque isso as afasta da escola e é um trabalho horroroso e sujo, mas na verdade, é porque ganha pouco. Bom mesmo é a menina deixar de estudar pra ser modelo e sustentar os pais, ou ser atriz mirim ou cantora e ter a sua vida totalmente modificada, mesmo que não tenha estrutura psicológica pra isso… mas o que importa mesmo é que vão encher o bolso e nunca precisarão de Bolsa-família, daí, é fácil criticar quem precisa!

Minha mensagem então é essa: – Calem a boca, nordestinos!
Calem a boca, porque vocês não precisam se rebaixar e tentar responder a tantos absurdos de gente que não entende o que é, mesmo sendo abandonado por tantos anos pelo próprio país, vocês tirarem tanta beleza e poesia das mãos calejadas e das peles ressecadas de sol a sol.
Calem a boca, e deixem quem não tem nada pra dizer jogar suas palavras ao vento. Não deixem que isso os tire de sua posição majestosa na construção desse povo maravilhoso, de tantas cores, sotaques, religiões e gentes.
Calem a boca, porque a história desse país responderá por si mesma a importância e a contribuição que vocês nos legaram, seja na literatura, na música, nas artes cênicas ou em quaisquer situações em que a força do seu povo falou mais alto e fez valer a máxima do escritor: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte!”
Que o Deus de todos os povos, raças, tribos e nações, os abençoe, queridos irmãos nordestinos! 

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Erich Fromm "O Pai e a Reprodução da Ordem Social"

"O poder externo da sociedade confronta-se com a criança crescida numa família através dos pais e (...) especialmente através do pai. O pai é, em relação ao filho o primeiro veiculador da autoridade social, não sendo, em relação ao conteúdo, seu modelo, mas sim sua cópia."

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Euclides da Cunha relata a Guerra de Canudos (1896-1897)

"Pregava contra a República; é certo.
O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação  mística; uma variante forçada ao delírio religioso.
Mas não traduzia o mais pálido intuito político: o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional.
Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um  chefe sacerdotal ou guerreiro.
Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurreta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um  doido."
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1946.


terça-feira, 14 de setembro de 2010

"Ode ao Burguês" - poema modernista de Mário de Andrade

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
É sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
E gemem sangues de alguns mil-réis fracos
Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
E tocam os Printemps com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
O êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
«–Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
–Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!»

Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
Sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burgês!...


MÁRIO DE ANDRADE. Poema extraído de "Paulicéia Desvairada"  (1922).

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Lenin e o Capitalismo de Estado Soviético como propulsor do Socialismo

"Ontem a tarefa principal do  momento era nacionalizar, confiscar, abater e aniquilar a burguesia e terminar com a sabotagem; tudo com a  maior decisão possível. Hoje, só os cegos não vêem que nacionalizamos, confiscamos, abatemos e ferimos mais do que tivemos tempo de calcular. A diferença entre a socialização e o simples confisco está em que  é possível confiscar só com decisão, sem a capacidade de calcular e distribuir corretamente, enquanto que sem esta capacidade não se pode socializar (...) comparado com o atual estado de coisas em nossa República Soviética, o capitalismo de Estado seria um passo adiante. Se dentro de seis meses aproximadamente se implantasse o capitalismo de Estado em nossa República, seria  um êxito enorme e a mais segura garantia de que dentro de um ano o  socialismo se consolidaria definitivamente em nosso país  e se tornaria invencível (...)
O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista, baseada nos últimos descobrimentos da ciência moderna. É inconcebível sem uma organização estatal planificada, que submeta dezenas de milhões de pessoas ao  mais estrito cumprimento de uma norma única na  produção e na distribuição dos produtos. (...)
O socialismo é inconcebível, além disto, sem a dominação do proletariado no Estado (...) E a história  foi tomando um sentido tão peculiar, que em 1918 deu à luz a duas metades desconexas de socialismo que existiam ao lado de uma outra como dois futuros franguinhos na casca única do imperialismo internacional.  Em 1918, a Alemanha e a Rússia são a encarnação evidente da realização material das condições econômicas, produtivas e sócio-econômicas do socialismo, por um  lado, e das condições políticas, por outro."  
LENIN. Infantilismo de Esquerda e a Mentalidade Pequeno-Burguesa. In: Estado, Ditadura do Proletariado e Poder Soviético. org. Antônio Roberto Bertelli. ed. Oficina de Livros, p. 16-18.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Leonardo Boff e a discriminação católica contra as mulheres

Um dos pontos que mais salta aos olhos como contrário ao sentido do direito é a vigência da discriminação da mulher no seio da Igreja. As mulheres  compõem metade do número dos fiéis, e o número de religiosas é dez vezes superior ao dos religiosos. Apesar disto, são, juridicamente, consideradas incapazes para quase todas as funções de direção na Igreja, com escassíssima presença nos secretariados romanos, nas comissões e sagradas congregações. Em razão de uma tradição cultural assumida também na expressão histórica da palavra de deus, elas são excluídas do acesso aos cargos  ministeriais ligados ao sacramento da ordem. (...)
O argumento básico aduzido pela declaração da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé parece não ser nem o fato da tradição contrária à ordenação sacerdotal das mulheres,  nem a atitude de Cristo, nem a prática dos apóstolos, mas simplesmente de ordem biológica: o  fato de Cristo ter sido  um varão.


BOFF, Leonardo. Igreja: Carisma e Poder. ed. Record, p. 88. 

sábado, 17 de julho de 2010

Foucault - Castigos e Clausura (uma Sociologia do Corpo)

"Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão  penal (...)  A punição pouco a  pouco deixou de ser  uma cena. E tudo o  que pudesse implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo (...) ficou a suspeita de que tal rito que dava um fecho  ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o  em selvageria (...) A punição vai-se  tornando, pois, a parte mais velada do processo penal (...) a certeza de  ser punido é que deve desviar  o homem do  crime e não mais o abominável teatro (...) o escândalo e a luz serão partilhados de outra forma; é a própria condenação que  marcará o delinquente com sinal negativo e unívoco: publicidade,  portanto, dos debates e da sentença (...) se realiza a negação teórica: o essencial da  pena que nós, juízes, infligimos não creiais que  consista em punir;  o essencial  é procurar corrigir, reeducar, curar (...) O desaparecimento  dos suplícios é pois o espetáculo que se  elimina; mas é  também o domínio sobre o corpo que se extingue (...) O  corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário; qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao  mesmo tempo um  direito e como um bem. Segundo essa penalidade, o corpo é  colocado num sistema de  coação e de  privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do  corpo não são mais os  elementos constitutivos da pena. O  castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos  direitos suspensos."


FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. ed. Vozes, p. 12-14.


  

terça-feira, 22 de junho de 2010

Hume e a religião natural

"Lançai um olhar em redor do mundo; contemplai o todo e cada uma das suas partes; vereis que não é senão uma grande máquina, subdividida num infinito número de máquinas menores, que por sua vez admitem subdivisões num grau que vai para além do que os sentidos e as faculdades humanas podem captar e explicar.
Todas essas máquinas e até as suas partes menores se ajustam entre si com uma precisão que arrebata a admiração de todos quantos as contemplarem. A singular adaptação dos meios aos fins na natureza inteira assemelha-se exatamente, ainda que em muito excede, aos produtos do engenho humano, aos desígnios do homem, de seus pensamentos, sua sabedoria e sua inteligência.
Se, portanto, os efeitos se assemelham entre si, estamos obrigados a inferir...que também as causas são semelhantes, e que o Autor da Natureza se parece em algo com a mente humana, ainda que as suas faculdades sejam muito mais consideráveis, em proporção com a grandeza da obra que executou"

HUME, David. Diálogos sobre a religião natural.

O Deísmo segundo Voltaire

"O deísta é um homem firmemente persuadido da existência de um Ser supremo tão bom como poderoso, que formou todos os seres extensos, vegetantes, sensíveis e reflexivos...
Reunido neste princípio com o resto do universo, não abraça nenhuma das seitas, que todas elas se contradizem. A sua religião é a mais antiga e a mais extensa; pois a simples adoração de um Deus precedeu todos os sistemas do mundo... Crê que a religião não consiste nem nas opiniões de uma metafísica ininteligível, nem em vãos aparatos ou solenidades...
O maometano grita-lhe: tem cuidado, se não fazes a peregrinação a Meca!
Desgraçado de ti, diz-lhe um franciscano, se não fazes uma viagem a Nossa Senhora do Loreto!
Ele ri-se de Loreto e de Meca; mas socorre o indigente e defende o oprimido."

VOLTAIRE. François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Engels e as Primeiras Formações Familiares

"...o círculo da união conjugal comum, que era muito amplo em sua origem, estreita-se pouco a pouco até que, finalmente, compreende apenas o casal isolado que hoje predomina. (...)
E, de fato, que encontramos como forma mais antiga e primitiva da família, cuja existência possamos comprovar irrefutavelmente pela história e que ainda hoje podemos estudar em certos lugares? É o casamento grupal, forma em que grupos inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres se possuem mutuamente, deixando bem pouca margem para ciúmes.
(...) primeira etapa da família (...) só os ascendentes e os descendentes, os pais e os filhos, estão reciprocamente excluídos dos direitos e deveres do casamento (...) nesse estágio, o vínculo de irmão e irmã pressupõe por si a relação sexual entre ambos. (...)
Se o primeiro progresso na organização da família consistiu em excluir os pais e os filhos das relações sexuais entre si, o segundo foi a exclusão dos irmãos. (...)
Em todas as formas de família por grupos, não se pode saber com certeza quem é o pai de uma criança, mas sabe-se quem é a mãe (...) a descendência por linha materna é a única decisiva, sendo a única certa. Uma vez proibidas as relações sexuais entre todos os irmãos e irmãs, inclusive os colaterais mais distantes por linha materna, o grupo de que falamos se transforma numa gens, isto é, constitui-se como que um círculo fechado de parentes consanguíneos por linha feminina que não se podem casar entre si. (...)
À medida que, porém, desenvolvia-se a gens e se tornavam mais numerosas as classes de irmãos e irmãs, entre os quais agora era impossível o casamento, a união conjugal por pares, baseada num certo costume, começou a se consolidar (...) Com o crescente emaranhado das proibições de casamento, os casamentos por grupos se tornaram cada vez mais impossíveis e acabaram sendo substituídos pela família pré-monogâmica. Nesse estágio, um homem vive com uma mulher, mas de forma tal que a poligamia e a infidelidade ocasional permanecem um direito dos homens, embora a poligamia seja raramente observada, também por causas econômicas, ao passo que, na maioria dos casos, exige-se das mulheres a mais rigorosa fidelidade enquanto durar a vida em comum, sendo o adultério destas castigado de maneira cruel."


ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. trad. Ciro Mioranza. ed. Escala, p. 42-57.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O "Herói" Tiradentes por Paulo Miceli

"Tratar de Tiradentes, apesar das dificuldades e riscos, é sempre interessante. Foi o herói mais votado na pequena pesquisa feita entre estudantes, e quase certamente o seria num plebiscito nacional. Nele, a história que as pessoas chamam real ou verdadeira confunde-se com a tradição que alimenta o imaginário popular. Confunde-se e vai confundir-se sempre, porque inscrita em um espaço impenetrável para a ciência, pois enquanto a universidade rejeita (para justificar sua própria existência) uma história que, à falta de evidências, dá livre curso à imaginação e à fantasia, a 'massa' - cuja conquista pelos intelectuais, após Foucault, tornou-se questão complicada - ignora soberba as opiniões e sentenças que a academia continua emitindo.
Tira-dentes, herói nacional: um homem que só deu certo depois de morto. Aí talvez a razão maior da identidade, num lugar onde a vida reserva poucas esperanças de sucesso. Além do exemplo e do conselho que se espera do herói, uma grande vingança...
Do rosto de Tiradentes pouco se sabe. Sumiu com a cabeça, que a mando das autoridades foi separada do corpo; perdeu-se quando os olhos que o viram vivo também deixaram de ver. Por isso, cada um tratou de criar seu próprio Tiradentes, havendo quem o veja como imponente oficial e quem o apresente assemelhado a Jesus Cristo. Há ainda quem pesquise para recuperar suas feições verdadeiras: Elifas Andreato, na capa de um disco, apresenta uma espécie de retrato-falado, onde o herói aparece meio vesgo, de olhos empapuçados, nariz achatado, barbas e cabelos longos, além de um ar de boêmio fanfarrão, muito de acordo com as descrições que se tem dele, por sinal.
Talvez haja vantagem nisso, mas o mito começa a se dissolver quando desvendado: o habitat do herói é a imaginação, e cada um deve vê-lo (senti-lo) com seus próprios olhos. Não há retrato de Tiradentes, a não ser o que as palavras desenham, e as palavras dizem principalmente: 'por aqui passava um homem...' "

MICELI, Paulo. O Mito do Herói Nacional. São Paulo: ed. Contexto, p.41.


 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Georges Duby e a Peste Negra


"O mal propagava-se melhor nos amontoados de pardieiros insalubres. Um mal cego. Estava-se acostumado a vê-lo ceifar as crianças, os pobres. Eis que ele atacava antes os adultos jovens, em pleno vigor, e, o que era francamente escandaloso: atacava também os ricos. Os contemporâneos pensam que um terço da população européia desapareceu com o flagelo. O julgamento parece concordar com o que se pode verificar no conjunto. O tributo pago pelas grandes cidades foi certamente mais pesado (...) a doença havia-se instalado, voltando a se manifestar periodicamente, a cada dez, vinte anos, e com igual fúria. Que fazer? Havia grandes médicos na corte do papa de Avignon, e em Paris, junto ao rei da França; ansiosos, eles se interrogavam. Em vão. De onde vinha o mal? Do pecado? A culpa é dos judeus, eles envenenaram os poços; tudo é pretexto para massacrá-los. É a cólera de Deus: as pessoas flagelam-se para aplacá-la. As cidades encolhem-se no cinturão de suas muralhas, trancafiam-se. Matavam-se os que queriam, à noite, insinuar-se dentro dela; ou então, ao contrário, fugia-se em bandos errantes, enlouquecidos. Em todo caso, o sobressalto, a brusca interrupção, a grande fratura."

DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: ed. Martins Fontes, 1988, pp. 112-3.


quarta-feira, 7 de abril de 2010

Gombrich e as fascinantes Pirâmides

"Falam-nos de uma terra que estava tão perfeitamente organizada que foi capaz de empilhar esses gigantescos morros tumulares durante a vida de um único monarca, e falam-nos de reis que eram tão ricos e poderosos que puderam forçar milhares e milhares de trabalhadores ou escravos a labutar para eles, ano após ano, a cortar pedras nos canteiros, a arrastá-las ao local da construção e a deslocá-las com recursos sumamente primitivos até o túmulo ficar pronto para receber o faraó."
GOMBRICH, Ernst. Arte para a Eternidade. In: A História da Arte. ed. LTC. p. 55.
 
 

domingo, 4 de abril de 2010

Baudrillard e a Virtualidade

"O cadáver do Real - se existe algum - não foi descoberto, e não será encontrado em parte alguma. E isto porque o Real não está apenas morto (como Deus está); ele pura e simplesmente desapareceu. Em nosso próprio mundo virtual, a questão do real, do referente, do sujeito e seu objeto, não pode mais ser apresentada."

"...a espécie humana poderia estar se empenhando numa espécie de escrita automática do mundo, dedicando-se a uma realidade virtual automatizada e operacionalizada, onde os seres humanos enquanto tais não têm mais motivos para existir."
"A subjetividade humana torna-se um conjunto de funções inúteis (...) todas as funções tradicionais - a crítica, a política, a sexual, as funções sociais - tornam-se inúteis num mundo virtual."

BAUDRILLARD, Jean. A Ilusão Vital. ed. Civilização Brasileira, 2001.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Nietzsche e o veneno da moral ressentida

"Sujeitamo-nos aos fatos: o povo venceu - ou os escravos, ou a plebe, ou o rebanho, ou como quiser chamá-lo - se isso aconteceu graças aos judeus, muito bem! Jamais um povo teve missão maior na história universal. Os senhores foram abolidos; a moral do homem comum venceu. Ao mesmo tempo, essa vitória pode ser tomada como um envenenamento do sangue (...) indubitavelmente essa intoxicação foi bem-sucedida. A redenção do gênero humano está bem encaminhada; tudo se judaíza, cristianiza, plebeíza visivelmente (...) a Igreja (...) atualmente, ela afasta mais do que seduz...Qual de nós seria livre-pensador, se não houvesse a Igreja? A Igreja é que nos repugna, não o seu veneno...Não considerando a Igreja, também nós amamos o veneno"

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral, uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. ed. Companhia das Letras, p. 28.













Karl Marx e a Ilusão Religiosa

"...o homem faz a religião; a religião não faz o homem. (...) Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido (...) A religião é o suspiro do ser oprimido, o íntimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. O banimento da religião como felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, a crítica do vale de lágrimas de que a religião é o esplendor."
 
MARX, Karl. Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In: Manuscritos Econômico-Filosóficos. trad. Alex Marins. ed. Martin Claret, p.45-46.
 




domingo, 21 de março de 2010

Gombrich fala sobre Mumificação

"...os egípcios acreditavam que o corpo tinha que ser preservado a fim de que a alma pudesse continuar vivendo no além. Por isso impediam a desintegração do cadáver, graças a um elaborado método de embalsamar e enfaixar em tiras de pano."
GOMBRICH, E.H. Arte para a Eternidade. p. 55.






Platão e o Deus que manda filosofar

"...ao receber ordens do Deus, ao menos conforme pude ouvir e interpretar essa mesma ordem, pela qual deveria viver filosofando e dedicando-me a conhecer a mim mesmo e aos outros."
PLATÃO. A Apologia de Sócrates. Coleção Os Pensadores. São Paulo: ed. Nova Cultural, p. 80-81.

"Ó atenienses, eu vos amo, mas obedecerei primeiro ao Deus do que a vós, e enquanto tiver ânimo, e enquanto for capaz, não pararei de filosofar, não pararei de estimular-vos e censurar-vos."
PLATÃO. A Apologia de Sócrates. Coleção Os Pensadores. São Paulo: ed. Nova Cultural, p. 80-81.

Desafio do prof. Tiago Menta: a qual "Deus" se refere Platão?

terça-feira, 16 de março de 2010

Heródoto "caracteriza" os africanos

Heródoto de Halicarnasso, dito "pai da História" no mundo grego (talvez o primeiro historiador, no sentido técnico/metodológico do termo), vivera entre 484 aC - 425 aC.


No trecho selecionado a seguir o historiador grego descreve, com o olhar de um grego antigo, o que seriam os africanos (na Antiguidade todos eram apontados como etíopes):

"Os homens daquelas regiões são negros por causa do calor e os etíopes da Líbia são entre todos os homens os de cabelos mais crespos (...) O sêmen por eles ejaculado quando se une às mulheres também não é branco (...) e, sim, negro como a sua tez (acontece o mesmo com o sêmen dos etíopes)"

HERÓDOTO. História. São Paulo: ed. Ediouro, 1988, p. 95, 182.

Francis Arzalier - A África endividada

Segundo os "quadros da dívida" publicados pelo Banco Mundial, de 40 países fortemente endividados, 33 pertencem à África subsaariana (...)

São muitos os peritos do Banco Mundial e do FMI que se dão ao luxo de reconhecer que muitas dessas dívidas nunca poderão ser pagas: o continente africano e os seus povos devem continuar estrangulados pela dívida. Para as grandes potências financeiras e políticas esta é mais uma arma política do que uma fonte de lucros: o total das dívidas da África subsaariana (223 bilhões de dólares) mal ultrapassa 10% do total mundial. Mas permite impor aos governos africanos os "planos de ajuste estrutural", quer dizer, controlar suas decisões políticas, econômicas e sociais (austeridade para os serviços públicos e privatização das riquezas). Melhor ainda: esta dominação do capitalismo mundial é, na África de 1998, mais forte do que foi na era colonial. A maior parte das aldeias da África Ocidental Francesa vivia, em 1930, numa quase autarquia comunitária e só sentia o peso da autoridade colonial no trabalho forçado e nos impostos. No final do século XX, o aldeão da Costa do Marfim ou do Senegal sabe que o preço das suas colheitas de cacau ou de amendoim depende das Bolsas ocidentais!

ARZALIER, Francis. A África das Independências e o Comunismo (1960-1998). In: O Livro Negro do Capitalismo. ed. Record, p. 282.

* François ou Francis Arzalier é historiador francês, professor da IUFM Beauvais e diretor da revista "África Hoje".